Nascido para cidade.
Eu nasci na cidade.
Não na metrópole, não em São Paulo, nem no Rio, muito menos
em Floripa, nem em Fortaleza. Nasci na cidade sou pra cidade.
Não cidade grande, mas a do interior.
Não sei o que é
pegar um ônibus lotado (a cidade aqui não tem nem empresa de ônibus), mas
também não sei tirar leite de vaca. Nunca, nem de perto, vi um metrô, mas com
muito pensar, pesar e dificuldade, consigo plantar um pé de alface num canto de
casa.
Nasci na cidade e pra cidade, para ser engolido pela urbe e
todas as suas ruas e bairros vazios. Garoto de condomínio, nike no pé e no
peito, pivete que não se viraria um dia num subúrbio, num bairro de periferia,
que não sabe se virar sozinho. Anda de Uber, não de Taxi, nem de ônibus.
Marmita é tipo uma aventura, pois o self-service sempre esteve disponível.
Desculpa por começar outro texto de forma melancólica ou
angustiante, é meu jeitinho.
10/08/2021 eu descobri que na verdade, eu não nasci tão bem
assim para a cidade grande, mas quem poderia me julgar? Você se acha preparado
para viver numa metrópole?
Foi andando nas ruas mais movimentadas de Blumenau que eu
percebi o quanto a cidade é um organismo próprio. Pessoas passam pelos mendigos
como se fossem invisíveis, como uma ferida na pele que preferimos ignorar,
mesmo ela estando ali, evidente, mostrando nossas fragilidades como humanos em
carne e osso. Os carros nas ruas, cortam, picotam e dilaceram o trânsito, as
buzinas e os insultos são mais frequentes no ar do que o próprio oxigênio. O
trânsito de Blumenau, em si, é caótico. As ruas são serpentes que se devoram em
longos trajetos.
Blumenau é um organismo. Picotado, dilacerado, dopado,
tentando se recuperar com toda a força que tenta se fragmentar. Retroativo. Se
destrói e se reconstrói, automaticamente, tentando apagar seus erros, mas
mostrando ainda mais suas fragilidades no processo, deixando um rastro bem
explicito de tudo que temos medo: Descontrole no meio de nossas vidas, tão
perfeitas, sulistas.
Antes que me perguntem, Blumenau é uma cidade que gosto de
ter contato, mas é uma cidade que com certeza não nasci vivendo, terei que
aprender a viver.
A cidade loira, (apelido que roubei de Flávia Busarello,
psicóloga formada pela FURB – Universidade Regional de Blumenau, que realizou
um magnífico TCC chamado “A cor canela e a cidade loira”, um estudo de caso
sobre a identidade dos povos originários no contexto urbanizado de Blumenau) se
vende como uma utopia da região sul do Brasil.
O trabalho libertador, a
cultura impecável, as manhãs do sul do mundo, as oportunidades e as temporadas
únicas - Blumenau, a capital da Oktoberfest e da Cultura Alemã, tão bela sul do
mundo.
Foi a cidade que ameaçou
(assim como muitas outras cidades) de abuso uma moradora por ter votado em
Fernando Haddad e não em Jair Messias Bolsonaro nas eleições de 2018. Foi a
cidade que assediou vereadoras que tentavam se eleger a cargos nas eleições de
2020. Foi a cidade que possuí uma sede e ligações com o grupo Ku Klux Klan. Ler
isso é como uma afronta a nossas próprias convicções, aos nossos sentimentos,
nossos desejos, não é?
Como podemos cometer erros?
Dificilmente erramos.
Esse espanto, essa repudia a
este texto, este desgosto, descontentamento, muitas vezes surge quando finalmente
percebemos: Tais coisas podem ser verdades, no meio da utopia que criamos. E todos estes sentimentos vem
acompanhados de um desolador: "Como pode tudo isto ser verdade"? Pois nós, que
criamos a bolha de perfeição, dificilmente gostamos de ver ela quebrada. Como
podemos nós permitir quebrar essa realidade? A crítica ao nosso modo de viver,
principalmente quando nos puxa para a realidade, geralmente nos causa desconforto.
Por isso permanecemos dopados, irreais, fechamos a cara para os moradores de
ruas, levantamos a cabeça. Justificamos os assédios, os estupros, os
latrocínios e os genocídios. Quem está na rua é vagabundo, preguiçoso. Quem foi
assediado, pediu por isso. Quem morreu, já tinha chego a hora.
E se... Estivermos errados?
Não! Não podemos pensar
assim!
Mas e se... Talvez não seja
bem assim?
Não!
Como... Podemos... Cometer...
Erros?
Blumenau é uma cidade que professores, alunos, trabalhadores
por muitas vezes já reclamaram da dificuldade de formar vínculos, que a
indústria reina e impera como a controladora de opiniões, mentalidades e
direções. Que os momentos de fôlego que temos estão antes do caminho para o
trabalho e após o caminho de volta. A urbe, muitas vezes, é uma cidade que
forma heróis, mas também que mata heróis.
Pra tentar ser mais específico com o que eu quero dizer, vou
trazer um trecho texto de três estudantes de Psicologia da FURB de Blumenau
(Seus nomes: Jessica, Lauryn e Yasmin) em seu texto “Aprendendo a amarrar os sapatos”,
cujo o link (assim como todas as outras referências, estarão no fim da página).
“São 20:07 quando a professora
encerra a aula. A próxima deveria iniciar às 20:20, mas o professor de cálculo
sempre atrasa e costuma chegar na sala por volta de 20:30. O estudante calcula
o tempo e considera que será suficiente para ir até o Giassi comprar algo para
comer. As opções da cantina enjoam rápido e é bom variar. Para encurtar o
caminho ele não vai até a faixa de pedestres na sinaleira com a rua São Paulo.
Usar a passarela não é nem opção. Então, corre apressado e chega até o canteiro
que divide as pistas da Antônio da Veiga. Olha para o chão e percebe que o
cadarço de seu tênis está desamarrado. Na fração de segundos que leva para
decidir se refaz a amarração antes ou depois de terminar de atravessar a rua,
ele consegue enxergar a cena em que tropeça no meio da rua e é atropelado por
uma moto na sequência. Ainda impressionado com a velocidade de seus
pensamentos, percebe que não há veículos se aproximando e que pode cruzar as
duas pistas com calma, sem correr o risco de ser atropelado, mas atento para
não tropeçar. Ao chegar na calçada, abaixa-se imediatamente para prender bem
seu calçado ao pé e evitar qualquer catástrofe.
— Ei!
Ainda agachado no meio da calçada, o estudante olha ao seu redor para identificar de onde vinha o chamado. Sentada no meio fio, atrás de seu carrinho lotado de caixas de papelão, a catadora de lixo o encara.
— Não tenho dinheiro! — responde
imediatamente o estudante.
— Então é isso que vocês aprendem do
outro lado da rua? Que o
mundo gira em torno do dinheiro? —
responde a catadora.”
[Aprendendo
a amarrar os sapatos – Antítese 3. Edição].
Tantos sonhos passam pela nossa cabeça, surpreendendo nossa
velocidade de pensamento, para no fim, tropeçarmos nos próprios pés e
percebermos que... Talvez a vida não seja exatamente assim, como pensamos tão rápido. Há
pessoas lá fora que não tiveram a capacidade de sonhar, ou de amarrar os
sapatos. Por que corremos tanto então? Por que não paramos, nós, olhamos ao
redor, com pés no chão e marchemos juntos?
Na cidade pequena, você sai na rua com seus pais e eles
param (a cada 30 segundos) pra cumprimentar e conversar com qualquer conhecido
(e pode ter certeza que eles conhecem muita gente) que passa pelo caminho. Há
pais que já ficam com o braço levantado, pois sabe que vão encontrar ali metade
do mundo.
A cidade grande há mais ignorância, há o desconhecimento, há
a necessidade de permanecer invisível. De fingir que o morador de rua não está
ali. Que o outro é uma possível ameaça. Que você vai ter que cruzar a rua pra
evitar problemas. Que o cheiro do cigarro é a saída. Pois não temos pés para tropeçar,
pois já voamos demais para sequer pensar em parar.
Não que, nas cidades pequenas não haja menos problemas: Preconceitos, ignorância. Todos estão ali. Só talvez em menos contraste. As cidades pequenas formam uma realidade tão angustiante quanto: Parece que elas são o mundo.
A cidade pequena cria a sensação que todos são iguais, que pensam igual, com opiniões e mentes fechadas, que viverão iguais, que não há mendigos, que não há os problemas como Blumenau, ou São Paulo, ou Fortaleza, ou qualquer outra. "Problemas de cidade grande". Eles estão ali, ainda eclodindo, com capacidade de ser revertidos, mas pouco a pouco somos dopados, fingindo que não há escapatória.
O que me incomodou demais neste trecho das autoras é o que
mais há de crítica em mim: É isto que aprendi, em toda a minha vida, que tudo
gira em torno do dinheiro? Que esquecerei de meus irmãos? Que terei que tratar
a vida como uma competição, que viverei eternamente competindo, sem conseguir
viver? Que fingirei que não há problemas ao meu redor? Que, assim como os outros, fingirei ser invisível? Justificarei os assédios? As agressões? Serei eu mergulhado na realidade da urbe? Acharei normal catadores de lixo viverem na margem da estrada, enquanto tantos estão em torres de marfim, dentro do muro da faculdade, com seus Jaguares potentes que picotam o asfalto?
Que esconderei toda a minha realidade para uma utopia que já
nem sei se gosto tanto? Que virarei a cara e o nariz para o céu nublado, enquanto
o chão, onde tropeço, nem sequer ligo, que sou mutilado
na urbe, guardando tantas histórias, tantas paixões, tantos acontecimentos, que
talvez nunca serão contados, ou que talvez não deveriam ser contados?
A cidade grande tenta esconder de nós a realidade, e quando ela nos aparece, nós ficamos incomodados, pois não queríamos estar vivendo aquilo.
Ali está, o grande mix de emoções. A realidade desigual. Os gritos
no escuro. De vitória ou de terror. Ambos em contrastes.
Será, talvez, para sempre?
Eu aprendi e entendi que, no meio da minha angustia por não ter
dinheiro pra comprar um sanduíche pro mendigo, na real, mal fazia a diferença,
ele já tinha recebido tantos “Nãos” num dia só, que mais um, não fazia
diferença. Ele já se acostumara, com os nãos, com a realidade dura, pra ele já
estava “tudo bem”.
Como pode? Aquilo me desolou, seu olhar de conformismo, seu entendimento.
Estava tudo menos tudo bem. Porém a urbe criou ele assim.
A urbe criou nós, justificando os erros.
Essa sensação começou a me devorar, mas de uma forma que
20 reais já não eram mais suficientes. Pois, se quisesse mudar tudo aquilo ali.
Não haveria como. Ia acabar me matando no processo, ou perdendo toda a minha sanidade
mental. Gastaria todo o meu dinheiro, se possível, para no fim perceber: Nada posso
fazer.
Esta é a urbe: Que nos entorpece, que nos faz fingir que
nada podemos fazer, para no fim estarmos tão crentes disso, que nem nos movemos.
Que mata os heróis. Que constrói os heróis. Que os mata novamente. Que nos faz fugir da realidade, que faz a própria realidade. A realidade que quer ser mostrada. Não há utopias
aqui, somente cidade e a realidade. Somente tentativa de nos entorpecer, mas
que agora, mais do que nunca, estamos acordando. Assim espero.
Podemos fazer, entretanto, jamais sozinhos.
Como faremos para então, todos, termos tênis nos pés e
amarrarmos nossos cadarços? Trazer a rua para dentro da universidade, ou a
universidade para dentro da rua. Aprender com o lado de fora, aprender a
amarrar o tênis com quem não teve sapatos, ou com quem não teve pés. Como
veremos o outro lado da moeda? Como veremos o céu com outros olhos? Como
faremos da cidade, no fim, menos mutiladora, mais inclusa?
Talvez em Micropolíticas, de pequenos passos, sanduíche por
sanduíche, história por história, fazendo pequenas diferenças que
desestabilizem o todo, talvez, só talvez, isso funcione.
No futuro, eu espero editar este trecho trazendo as
respostas.
Se não consegui, saiba: Morri tentando.
Que este texto tenha te incomodado tanto quanto eu fui incomodado
quando percebi que não teria dinheiro no mundo que eu pudesse dar para ajudar
um morador de rua. Ele estaria, quer eu fizesse algo ou não, fadado a procurar
o próximo não.
Precisamos nos incomodar para mudar um pouco, sem esperar
por utopias – Pois fingimos viver em uma e já não temos tempo para esperar uma
nova.
Sejamos críticos e ácidos com nós mesmos as vezes.
Mas não deixe que isso te envenene.
Vamos nas lutas, amarrando os sapatos uns dos outros.
Aprenderei a viver em cidade grande. Ou novamente morrerei tentando.
Referências.
[1] BUSARELLO, F. R.; HINKEL, J. A Cor Canela e a
Cidade Loira: um estudo de caso sobre a identidade dos povos originários no
contexto urbanizado de Blumenau (The Cinnamon Color and the Blonde City: a case
study on the identity of people originated...)Doi:
10.5212/Emancipacao.v.16i2.0010. Emancipação, v. 16, n. 2, p. 330-343,
17 maio 2017.
[3] RODA, Jessica. CORREA, Lauryn Vitória P. BORBA, Yasmin K.
Periódico Artístico Literário Independente. Antítese / 3º Edição - Agosto 2021.
Acesso em:
https://drive.google.com/file/d/1O99LVnGNWoKQ7Q7WvCAnI_cevZ8pQCHN/view
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