Quem tem tempo de sofrer? - [Crítica Arcane - 2º Temporada] - Reflexões sobre relações e violência.

Eu nunca me permiti fazer críticas literárias ou de filmes, dificilmente acho uma obra realmente ruim, ou coloco elas numa linha, acabo dando mais valor a experimentação e ao momento, também nunca me permiti a escrita deste gênero por não acreditar que eu tenha um valor crítico, contudo, entro em discussões recentes e acompanho algumas críticas que me fizeram permitir, junto com a quase conclusão do curso de psicologia, pelo menos um ensaio.

A literatura desempenha um papel fundamental na constituição da subjetividade humana, permitindo explorar emoções, pensamentos e experiências profundas. Desde as tragédias gregas, como "Édipo Rei" e "Antígona", até os grandes contos modernos e contemporâneos, como "A metamorfose" e "1984", a literatura nos apresenta personagens e narrativas que refletem e moldam nossa compreensão de nós mesmos. A literatura não apenas reflete a realidade, mas também a transforma, influenciando nossa forma de ver o mundo e nós mesmos. Ela nos permite explorar a complexidade humana, enfrentar nossos medos e desejos, e encontrar significado em nossas vidas. [Trecho retirado do meu TCC]

Trace uma semelhança do que antes era somente a literatura (escrita) e suas funções com o espetáculo do cinema.

Deleuze e Foucault tem opiniões muito interessantes sobre cinema, Guatarri ainda completa “O cinema é o divã do pobre”, de fato, nem todos tem condições de bancar um processo terapêutico (aceitemos o fato que um processo de análise ou de terapia no Brasil é um privilégio para poucos), o cinema é uma experimentação, é um processo de explorar a obra, explorar a criação, se explorar e se identificar, elaborar e produzir formas de subjetivação. Não necessariamente por uma realidade concreta, mas com a capacidade de entrelaçar uma rede de simbolismos internos.

Quem tem tempo de sofrer? - Reflexões sobre relações e violência.

A segunda temporada de Arcane chega com um chute no estômago e termina com um outro soco na cara - Não há tempo para recuperação de um para o outro e você lide com isso, fim de papo.

Típico de obras mais distópicas (desde o Cyberpunk até o Steampunk, mas mais comum no primeiro caso), o ritmo acelerado traz sempre uma reflexão da violência, principalmente em setores de vulnerabilidade - nem todos tem fôlego, nem todos em espaço, nem todos tem a capacidade de sofrer ou reconhecer o próprio sofrimento, as coisas acontecem na vida acelerada como uma máquina de moer carne que não se interrompe e se retroalimenta para gerar mais energia destrutiva (Bladerunner, Maze Runner, Matrix podem ser alguns exemplos).

Julgar o universo de Arcane pela nossa ótica de realidade é sem dúvida, injusto com a série e com os personagens dela, visto que os roteiristas tem ao máximo que se reinventar num espaço onde a tecnologia é diferente, a sociedade se organiza de forma diferente, as experimentações humanas se transformam em infinidades inimagináveis pelas possibilidades que nós não temos acesso, e então, a forma de sofrer também muda.

Apesar disso, todos nós se identificamos em algum ponto com a obra, seja com Powder/Jinx, seja com Violet, seja com Jayce ou até mesmo, com Ambessa.

A fragmentação de uma cidade em Lado Alto / Lado Baixo escancara uma representação interessante das formas de sofrimento, Heimerdinger expressa isso no inicio da 1º temporada “Prisão, que conceito estranho, aprisionamos o corpo, mas a mente continua livre” (Piltover), enquanto vemos Zaunitas, livres de corpos, caminhando por todos os locais, atormentados por um sofrimento inimaginável em suas “mentes-livres” (Powder, Vi, Ekko, Vander, Mylo, todos os outros).

A ótica do sofrimento muda conforme seu contexto, nossas identificações acontecem quando vemos no sofrimento do outro parte do nosso sofrimento. Jayce armazena o corpo de Viktor para recuperação dentro de uma essência Hextech, lá ele permanece inconsciente até se curar “completamente” (Enlouquecendo no processo). Violet vê toda a sua realidade fragmentar, sua irmã virar uma assassina e sua paixão lhe virar as costas, iniciando nela mais uma etapa de um luto que nunca conseguiu elaborar. Abandono.

O abandono é sem dúvida uma das formas mais interessantes e angustiantes de sofrimento - todos tememos, todos recusamos, todos nós não sabemos lidar com o abandono - quando você é uma pessoa LGBTQIAPN+, então, essa identificação torna-se lacerante.

Quando vemos Violet quebrando metade de Zaun na porrada em shows de aposta, cedendo ao alcoolismo (que não foi abordado, afinal, em um mundo diferente, o álcool e seus efeitos podem se comportar de formas diferentes), com algumas insinuações de relacionamentos rasos num apartamento de cinco metros quadrados, me faz questionar se críticas à uma cena de sexo numa prisão são justas.

Provavelmente, no lugar de Violet, eu teria cometido os mesmos erros e os mesmos acertos - Diferente do lado alto, ou do lado externo (nós, da tela, que não conseguimos pegar acontecimentos desse time-skip). Quem nunca teve tempo, faz o que pode com o tempo que tem. A vida numa literatura punk é isto: não há espaço para sofrer, para transar, para conversar. Tudo pode desabar, seja pelas próprias mãos ou pelas mãos de uma irmã psicótica com desejo de explodir o mundo. E apesar de tudo parecer uma ficção, essa semelhança com a realidade é difícil de cair para nós, grande maioria do público, se não atribuirmos um certo significado simbólico dos acontecimentos ficcionais até o que realmente vivemos. Você pode perder o emprego hoje, seu pai falecer amanhã e seu carro quebrar na semana seguinte, sua namorada pode terminar com você no meio deste processo. Tragédias que não são tragédias, são apenas possibilidades que aconteceriam, com uma soma de fatores, a qualquer um que esteja na equação da vida. Haja coração, cabeça e apoio para lidar com tanto sofrimento.

Por isso, reitero que apesar da Caitlyn se parecer muito com a mãe da Violet (E Freud está rindo com um cachimbo em algum lugar do submundo), que o caos, as mortes, os socos no estômago e todo sofrimento que Violet passou - provavelmente qualquer um transaria naquela cela, pois numa vida como essa, você realmente acreditaria que há tempo de espera?

Me pergunto se não há um mínimo de semelhança com todos os amigos gays, lésbicas e trans que tiveram que aproveitar qualquer espaço - salubre ou insalubre - para qualquer relação (sexual ou não), para fugir de um escopo corriqueiro, comum e avassalador que nós, da vida real, conhecemos: Violência.

Nossa semelhança com literaturas Cyberpunk, Distópicas é muito mais próxima do que imaginamos. Só que não aceitamos duas coisas: Que não temos todo tempo do mundo e que Nem tudo acontece no tempo certo.

Nem para sofrer, nem para viver.

E temos que lidar com isso.

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