48 horas para não se sentir tão vazio.

Caminhava.

Dia quente para um inverno, num mesclado de mudanças temporais que os jornais já debatiam há muito tempo se era natural ou não. Não fazia diferença. Céu limpo, onde nuvens algodão davam um toque artístico ao xadrez azul-branco monótono que existia sobre os tetos das casas. Vento fresco, amigável, batendo no rosto como um beijo suave.

As ruas, como sempre, urbanas.

Casas com os jardins vazios, criançada na escola, buzinadas aqui e ali, vendedores alegres, vizinhos debruçados sobre os portões, sorrindo para o nada, fofocando. Sinfonia de cidade pequena, você ouvia, depois parava de ouvir por alguns míseros segundos, e neste meio tempo já ouvia algo novo. O motor rugindo dava espaço, momentaneamente, para alguma máquina trabalhando num canteiro de obras, e com a ansiedade artística do papel ruidoso automobilístico, retornava com todo fervor para simbolizar que ainda estaria ali, naquela paisagem urbana.

Era sexta, dia de fazer barulho, correr para casa, pisar no acelerador, ver a família, os amigos, abrir o engradado de cerveja. Subir o elevador, olhar o mundo se desligando da rotina semanal corriqueira e monótona, ver o mosaico mutável de carros se atravessando no asfalto, lá do décimo andar.

Caminhava na rua porque gostava de tirar esse dia em especial para voltar da escola com calma, sentir o prazer da sensação de fim, de que tudo acabaria por 48 horas, degustar de pouco em pouco as pequenas doses de prazer, de notar a conclusão de mais um capítulo da semana. Os pés raspando no asfalto, a mochila nas costas, os fones no ouvido. Com a boca, gesticulava cumprimentos para quem passava na rua, geralmente respondiam, sextas-feiras deixavam as pessoas educadas, ainda mais em ruas cheias.

O fone, último volume, a trilha sonora festiva de um momento como aquele, gastando as últimas energias antes de um banho quente com alguma coisa elétrica. O som reverberava pela cabeça, como um eco em uma caverna vazia. Não queria saber de mais nada, descansar seria o suficiente.

Passo-a-passo, a perna rígida no chão, parecia um papa-léguas, o som de seus passos se misturava com... Com algum outro som estranho.

Estranhou. Olhou ao redor, nada diferente.

Ouvia um barulho, mas, que barulho? Era diferente, ruidoso, estrondoso e escandaloso, nunca se quer havia escutado algo parecido. Parou, o barulho parou também. Deu um passo, o barulho voltou, sobressaindo por detrás dos fones, até se perder no silêncio.

Assustado, arrancou o fone, prestou atenção novamente, o vento atrapalhando e zunindo no seu rosto, sem mais sensação de seu beijo, só inquietação.

Caminhou.

Pisou.

Ouviu.

O som.

Passos ecoando longe. Um barulho quase sobrenatural, alto, reverberado.

 Aquilo tudo era um reflexo de seu próprio andar? Sua pisada que provocara tamanho eco? Como era possível? Nunca havia escutado nada parecido, não ali, no corredor de cimento de casas de sua rua.

Ainda mais sozinho.. SOZINHO??? Mas... É... Sozinho...

Nenhum carro na rua, nenhum vizinho, nenhuma criança além dos portões da escola, nenhum cortador de grama no horizonte.

Ele, e seus passos ecoantes se perdendo no infinito.

Pisou. Ouviu de novo, menos assustado agora, se acostumou com a sensação.

Saltou um pouco para a frente, agora ouvia ainda mais forte. O som batia no portão e no muro das casas, se afastava, e continuava indo até se perder num inaudível ruído, tão distante que, talvez, jamais alguém reconheceria ou se quer pensaria que aquilo, aquele misero eco, era proveniente de um passo saltitante, numa calçada de cimento numa rua de paralelepípedo vazia, sem carros, sem pessoas.

Achou engraçado, medo já não existia mais, pulava e fazia ritmos, continuava numa música engraçada e contagiante que, à primeira vista, não faria sentido para qualquer outro alguém, mas estava sozinho, completamente sozinho numa “ex-rua” movimentada.

A paisagem mórbida urbana já não parecia mais tão urbana, agora se misturava com os sons animados da solitude, de um estranhar-se sozinho, de sons que só existiriam ali, num isolamento aberto em meio a tanta liberdade provisória, sem pessoas, sem carros, sem sinfonias externas.

Esqueceu os fones, usaria eles outra hora.

Aproveitou, pela primeira vez, o único momento em que a solidão lhe proporcionou bons sentimentos. Sem carros, sem estresse, sem zunidos, sem problemas externos, apenas ecos ritmados nas batidas de seu coração, misturado com uma dança engraçada e humilhante que fazia no passo-a-passo.

O portão de casa, cada vez mais próximo, e a sensação de que o fim da dança chegaria já brotava e borbulhava no estômago, numa expectativa desgostosa de encerramento de capítulo, sem posfácio, sem um final feliz, somente o encerramento, a conclusão.

Pula, anda, caminha e corre. Música, ecos, ouvir, sentir as ondas vibrando em cada centímetro de seu corpo. Desejava que continuassem, realizando o próximo passo para as sensações picotadas.

Diante do nariz, a porta. Entrar em casa, dizer adeus a algo que tinha a estranha sensação de jamais presenciar novamente em sua vida. Estranha sensação de ficar surdo novamente, de jamais ouvir nada, de nenhum eco repercutir em sua mente. Congelou diante da expectativa estranha do desconhecido, enfrentar ou fugir, continuar dançando ou almejar o que tanto quis a semana inteira?

Pisou, e parou.

Os carros voltaram a se ouvir no horizonte, as crianças gritavam com o sinal da escola, as máquinas já se desligavam, os vizinhos fofocavam.

Confuso, porém grato.

Agradeceu ao momento, a uma oportunidade única que só refletiria com verdadeiro anseio no meio das madrugadas, nas insônias.

Agradeceu por ter um momento de paz, no meio da urbe, no meio dos prédios e dos corredores de cimentos eternos, por ouvir ecos e se sentir livre da liberdade urbana.

Pois sabia das inúmeras vezes que esteve no meio de vales e mares de pessoas, do mosaico mutável de sentimentos e sensações de humanos, totalmente preenchido, mas sentindo-se sozinho, se sentindo vazio e preso a falsa liberdade da cidade. São os fins que escrevemos, que sentimos todos os dias, de sensações que não conseguem ser recapituladas, estranhas emoções que vem e vão, sentimentos de estarmos preso as emoções da cidade, de estarmos contagiados pelo automático, de jamais estarmos satisfeitos com nós mesmos, de ouvirmos ecos e rangidos, mas jamais darmos conta que, em meio a tantas coisas, continuamos sós. Os ecos, seus sentimentos refletidos, a solitude, o grande e recompensador conforto em meio ao nada, pois somos o nada, e assim nos completamos, somente sentindo a falta de sentido. O automático, eterno automático da vida.

Agradeceu, fechou a porta.

48 horas para não se sentir tão vazio.


                                                  


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Minimalismo, um manifesto.

Quem tem tempo de sofrer? - [Crítica Arcane - 2º Temporada] - Reflexões sobre relações e violência.

Isto também há de passar [Impermanência]