Para onde foram os canivetes?
O ano é 2014 e a internet ainda está repleta dos Emos, Cosplayers, Otakus (não que hoje não os tenha). O Facebook era a rede social mais usada, o Minecraft estava em todos os cantos da Internet, o Youtube era um palco em descobrimento.. As políticas eram diferentes, as pautas eram outras e o universo se movia de forma estranha. Havia, entretanto, um nicho específico na internet, que transpassa as subculturas nomeadas acima, as piadas com a automutilação. Era frequente, em grandes grupos, a ridicularização de jovens (normalmente inseridos entre 12 a 18 anos, do sexo feminino, introvertidas, principalmente no ensino médio), a assimilação do isolamento, a má compreensão da depressão no convívio social, a ainda não madura, mas germinante, discussão sobre sociabilidade no meio educativo, isolavam garotas e garotos que cortavam os pulsos em um grupo de “dramáticos”, “emos”, “tristes”, “isolados”, “mal comidos”, entre demais formas ofensivas. Era um “meme”, uma forma de isolar um grupo para realização de chacota por um determinado tipo de comportamento ou de conteúdo consumido, como músicas, séries, filmes, animes, desenhos.
Do outro lado, havia uma forma de identificação entre os grupos que, naquela época, cultivavam uma forma mais introspectiva do presente, com visões de pessimismo e cultivo de dores. As bandas pop-rock frequentemente compunham letras sobre amores fracassados e sentimentos dolorosos, autodepreciativos, que muitos se identificavam. Renato Russo nunca foi tão citado no Facebook, animes como Mirai Nikki estavam no mainstream. Longe, é claro, deste ser o motivo que os jovens se mutilam, entretanto é interessante notar que as formas de interpretação, exposição e vivência do sofrimento,naquela época, se davam diferente do nosso relacionamento com o mundo agora. Era frequentes, publicações de pessoas que se automutilam, sobre o assunto em si, às vezes como forma de alertar, às vezes como compartilhamento e alívio. Comunidades se uniam, usam as imagens padrões de suas subculturas (fotos dos animes, das artes, dos cantores) anexo ao momento ou ato de sofrimento e de cortar os pulsos.
É fato que a automutilação era sim um problema muito frequente em 2014, a OMS divulgou que, no mesmo ano, 13,7% dos adolescentes do país relataram algum problema de automutilação, sendo a maior taxa da América Latina. No Brasil, no período entre 2011 e 2016, houve predominância de notificações de autoagressão e tentativa de suicídio na faixa etária da adolescência (10 e 19 anos). No Rio Grande do Sul, em 2016, a faixa etária dos 15 aos 19 anos foi a que apresentou maiores taxas de notificação de autoagressão e tentativa de suicídio (Sinan/DVE/CEVS, 2017). Os últimos dados foram retirados diretamente do “Guia Intersetorial de prevenção do comportamento suicida em crianças e adolescentes”, referenciado abaixo, no final do texto.
Em 2019, a Associação Brasileira de Psiquiatria realizou uma pesquisa e divulgou, junto a campanha do Setembro Amarelo, um video em prevenção ao suicídio e automutilação que indicava que 20% dos jovens brasileiros entre 14 e 25 anos relataram ter se automutilado em algum período da vida. Na pesquisa oficial da associação, colocavam um número próximo a 17%, sendo 20% das mulheres e 13% dos homens.
Os dados indicam que a automutilação permanece, as pessoas ainda sofrem e os problemas ainda são os mesmos, tendo se agravado nas estatísticas. Contudo, as postagens tem sumido, se desintegrado do Facebook e das demais redes sociais em que os mesmos jovens de 2014 interagem e convivem. A questão é: para onde foram os canivetes?
Tínhamos exponencialmente uma forma de expressão da automutilação no Brasil através das redes sociais, sejam nas ofensas ou nas postagens, que hoje, se reduzem a mansarda e a sombra, são raros os momentos em que vemos menção ao fato, pelo menos, da mesma forma que era relatado na década passada.
A isso, devemos investigar alguns fatores:
Em um deles, a fiscalização das redes sociais e o maior cuidado com o tipo de postagem, os termos de uso, alterou drasticamente o meio de convivência, não somente de jovens, mas de qualquer faixa etária. Frequentemente vemos banimentos de pessoas famosas de redes sociais por violarem os termos propostos, da mesma forma que muitas vezes, postagens podem ser analisadas antes de irem ao ar, palavras precisam ser reescritas, pois podem ser bloqueadas, denúncias tem caminhos mais direto para moderadores.
Também temos o aumento de procura por profissionais da psicologia no Brasil nas mesmas datas, assim como uma maior divulgação de questões que se relacionam com a saúde mental, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) informa que de 2014 até 2019, houve um crescimento de 115% do aumento pela procura de psicólogos em serviços públicos, não contando o aumento em clínicas particular. Deve-se também mencionar que o aumento foi alavancado após o ano de 2020 com o advento da pandemia do COVID-19 que escancarou problemas de saúde mental e do sofrimento cotidiano não só do Brasil, mas do mundo. Dados em números concretos ainda não são precisos, há sites que falam de um aumento de 80%, há pesquisas que indicam números diferentes, plataformas específicas também acabam alterando os números, tal como divulgou Elias Baltazar, um dos fundador da “Terapia de Bolso”, site para video consultas com psicólogos, Elias informa que dentro de sua plataforma, no mesmo período, houve um crescimento de 300%.
Até a presente data, temos alguns recortes que acionaram autoridades e pesquisas desde a década passada, entre eles, o “Baleia Azul”, jogo que consistia em uma série de desafios que inseriram automutilação e até o suicidio como objetivos finais. A divulgação de astros, famosos e atletas com sofrimentos psicológicos que os impedia de praticar suas atividades, o suicídio de Robin Willians, Chester Bennington, Avicii, entre alguns outros. São casos que tomam ampla repercussão na mídia, tanto de forma sensacionalista quanto informativa, que levam a aumentar as discussões sobre os temas de saúde mental. É uma grande lamentação que apesar dos esforços, a Psicologia que atua com prevenção ainda é um palco a se desbravar, tanto no Brasil quanto no mundo, as pautas são diariamente botadas em conflitos com coachs ou profissionais inexperientes que acabam manchando os avanços, discussões e pesquisas que são construídos por profissionais qualificados, muitas vezes por serem publicados em locais mais acessíveis, sem rigor ético e em uma linguagem bem tentadora. A cada avanço, há sempre uma barreira nova a ser ultrapassada.
O ponto principal que podemos analisar de tudo que expus é: a nova forma de se relacionar com as redes sociais que, desde 2014, mudaram imensamente, sejam as principais redes sociais que são consumidas no mundo, tanto a forma de se expressar por meio delas, ou o que é considerado adequado nesses espaços (e aqui, se difere um pouco do primeiro ponto, de termos de uso para termos de aceitação social).
A transformação de todo esse convívio e das novas formas de expressão em meio a, principalmente, o TikTok, fazem com que não seja mais necessário que os grupos se dirijam diretamente com ofensas públicas, em contrapartida, a exposição de uma realidade forjada, em que só se mostra o sucesso, a criação de pessoas sem vulnerabilidades, a positividade tóxica, isolaram os grupos para uma “auto-destruição silenciosa”, o espaço que antes eram destinados às músicas agora é um palco a ser evitado, há formas de criar um afastamento deste tipo de postagem, em principal, no Instagram, onde germina a cada dia uma nova subcultura de positividade, aliada a todos os livros de autoajuda que juram de pés-juntos que se a sua vida não está bem resolvida aos 18 anos de idade, você é um completo fracasso. Os comentários assim isolam cada vez mais os jovens que hoje se deparam com um mundo distorcido do que lhes é apresentado nas telas para uma total anonimidade, quem sofre não parece ser digno de ganhar espaço nas telas, assim se cria também uma busca incansável pela demonstração de um bem-estar-de-rede-social, onde é, a todo custo, postado os momentos de felicidade, e a normalização deste espaço também faz surgir um termo para quem não o habita: o low-profile (pessoa que não realiza muitas publicações nas redes sociais).
O algoritmo, hoje muito mais desenvolvido do que no início da década passada, consegue facilmente forjar os espaços em que isto é demonstrado. É interessante lembrar que, caso você discorde dos pontos acima, talvez haja uma probabilidade do próprio algoritmo estar funcionando com você, o que retoma mais um ponto de problemática sobre a temática.
Advento de tudo isso, surge o que hoje se chama o “Incel”, os “Redpill” e os “Machos Alfa”, o contra movimento de resposta para um sofrimento que hoje não é mais possível de ser expressado, uma recusa completa a qualquer meio de sensibilização que supervaloriza a individualidade. O sofrimento e vulnerabilidade jamais podem tomar espaço, pois a mera menção é uma forma de humilhação e fracasso.
Isso sendo a ponta do Iceberg para um mar de misoginia, homofobia e todo o tipo de atrocidade que pode se fundir a bola de neve, mas não é a temática deste texto.
Essa nova política do sofrimento torna o trabalho da psicologia um campo de luta constante, há necessidade de uma constante atualização que se adeque a realidade do sofrimento vivenciado, o tal “Redpill” já citado é um surgimento extremamente recente que veio a se alavancar no ano de 2023, o que faz profissionais e estudantes terem que se revirar em inúmeras nomenclaturas e bibliografias para entender esta nova forma de subjetivação que se expressa como principal fonte, no mundo digital.
Necessito agora voltar ao título do texto: Para onde foram os canivetes? Se os dados mostram que as dores além de persistir, aumentaram, eles se esconderam? Isto é um avanço ou um retrocesso para a psicologia? As novas formas de enfrentar o sofrimento psíquico mostram resultados? Nossa nova forma de se relacionar com o mundo, seja ele virtual ou real, criou novas formas de presenciar e viver os sofrimentos, formas que fogem de exemplos, mas que surgem nas estatísticas, nos escritórios, nos quartos, se fundem com as telas e se distorcem na web. Há sempre novos perigos que surgem com o passar de cada ano, contudo ainda permanece a necessidade de bolar textos que criticam e questionam o rumo de fatos históricos que não foram esquecidos e superados. O que mais mostra presença é que, os memes ofensivos diminuem, o sofrimento, contudo, permanece.
Faço um apelo a necessidade de buscar ajuda, não em redes sociais, mas com profissionais e com uma rede de apoio adequada, por mais que o problema já não esteja transparecendo tanto nos veículos que mais consumimos, o que pode fazer com que as pessoas individualizem o sofrimento em frases “apenas eu faço isto e é uma bobeira”, a automutilação ainda toma parte do sofrimento cotidiano e é necessário demonstrar caminhos, superá-la e garantir saúde mental.
Ainda há canivetes cortando. Por baixo dos panos.
Referências:
Reinvenção da Intimidade - Políticas do Sofrimento Cotidiano (Christian Dunker)
GUIA INTERSETORIAL DE PREVENÇÃO DO COMPORTAMENTO SUICIDA EM CRIANÇAS E ADOLESCENTES ANO DE PUBLICAÇÃO 2019: https://saude.rs.gov.br/upload/arquivos/carga20190837/26173730-guia-intersetorial-de-prevencao-do-comportamento-suicida-em-criancas-e-adolescentes-2019.pdf
Postagem da Associação Brasileira de Psiquiatra, em 2019:
Terapia de Bolso: https://terapiadebolso.com.br/
Psicologia Ciência e Profissão - Diálogos - A prática psicológica na pandemia.
https://docs.google.com/document/d/1qIyRQwQUg0uNbo3_sm9Nico30bEZ-m1InOkEIAoNEkY/edit
Reportagem - Correio Brasiliense - Conselho Federal de Psicologia tem aumento de pedidos de consultas virtuais
Comentários
Postar um comentário