Quem tem o direito de envelhecer?
Quem tem o direito de envelhecer?
Digo direito, pois eu percebo a minha passagem do tempo, eu, Kaue, 20 anos, uma pessoa que cresceu tendo tudo. E quem está destinado ao mesmo emprego desde os 14 anos? Ou a mesma família, pois ingressou na maternidade e a paternidade tão cedo? Não percebendo sua passagem no tempo, mas sim o salto no tempo.
Quem tem o direito de envelhecer?
Eu não acho que todos tenham o direito de envelhecer, e não estou falando aqui de uma linha cronológica de tempo, de viver uma quantidade de anos, mas da etapa do desenvolvimento que consiste em perceber essa transição do tempo, de se perceber transitando pelo mundo. Lembro que quando eu tinha dez anos eu fui à São Paulo pela primeira vez e eu traumatizei meu pai de uma forma que nunca voltamos lá, vi um morador de rua pela primeira vez na minha vida e só fiz duas perguntas para ele: "Pai, onde ele dorme?" E meu pai respondeu "Na rua", e eu rebati: "E quem cuida dele?".
Meu pai não me respondeu, mas hoje eu o entendo. Entendo porque sei que muitos dali não tem o direito de envelhecer, eles pulam a etapa do tempo, uma hora nascem, outra hora já estão jovens, outra hora já estão adultos, não há envelhecimento, há pulos, porque o destino é um pouco cruel com algumas pessoas e elas não conseguem perceber a própria caminhada no tempo. Quem cuida deles? Quem vê o processo de tempo passar? Não. Não são adultos, não são jovens, não há nem distinção de gênero. São "moradores de rua", um suposto erro cronológico.
Com trinta anos já parecem ter vivido milênios, desgastes no tempo são deixados como cicatrizes em suas peles. E dói não só neles, em toda uma sociedade que não consegue tira-los desse vórtice temporal.
A garota que engravida de um abuso aos seus treze anos envelhece? Ou simplesmente é teletransportada para a idade adulta - você não tem mais o direito de brincar, agora você é mãe, mas como não poderia ser? Se a sua sociedade tão misógina e hipócrita só te criou para isso - antes você brincava de boneca, agora te julgam porque o seu suposto brinquedo não está na vitrine, mas sim em ambulatórios, creches, transportes, ruas, fábricas. Ela é uma criança? É uma adolescente? É uma moça? Uma garota? Não, é uma jovem-grávida, é uma característica fora da normatividade, ela é taxada como interrompida no processo de crescimento, ela não cresce mais, ela é catalogada como um erro-temporal.
Quem tem o direito de envelhecer?
O que tem que aceitar qualquer trabalho pois seus filhos estão em casa passando fome e se sujeita a trabalhar de sábado, domingo, segunda, terça, quinta, feriado, ele envelhece? Ridicularizamos o que trabalha num semáforo, fantasiado de felicidade, num final de semana embaixo de um sol escaldante - mas ele não escolheu envelhecer no tempo. Porque? Ele simplesmente deixou de ser garoto e viajou para o seu futuro, com todas as cicatrizes em mãos. Se perguntar a qualquer um deles o que desejavam ser quando eram crianças, verá de tudo. Astronauta, Piloto, Fazendeiro, Construtor, Médico. E quando você deixou de desejar? Quando deixou de ser criança? Até para alguém de vinte anos, em algumas condições, esta pergunta já não é respondida pois “Já faz tempo”.
Quem tem o direito de envelhecer? Todos têm os direitos de serem velhos, mas nem todos tem o direito de envelhecer, alguns simplesmente aceitam suas condições. Não há escola, não há locais seguros, não há quem cuidará de você, não há quem te guiará, você aprende ou morre.
A vida não é um interestelar, não viajaremos pelo tempo através de buracos-negros, aqui cavamos nosso próprio buraco numa sociedade que tem que evoluir, não buscando outro planeta, mas dentro de um planeta, que se recusa a entender o processo de envelhecimento, que aliás, é só pra quem quer.
Dentro desse querer, há também quem não quer, há os que são jovens eternos, numa sociedade da mutilação dos corpos em que há a possibilidade de ser um eterno boneco de 16 anos por baixo dos cortes de bisturis de milhões de cirurgias plásticas, há quem pode envelhecer e há quem não quer envelhecer, um tríplice pirâmide: Os que podem, os que não podem, os que não querem. The ageless - recusar o próprio processo no tempo. Não é à toa que é comum suas crises de identidade virando um ouroboros, devorando a própria história e condicionando todos nós para crises de identidade.
Já perguntou para algum idoso o que é envelhecer? – Muitos vão dizer “É ficar mais maduro, mais sábio”, outros respondem “Perder a vitalidade”, “Aceitar a finitude”. Mas você já parou para conversar com alguém da rua sobre “O que é envelhecer?”. Já me falaram “Não sei nem se eu vou estar vivo amanhã, quem dirá ficar velho”.
Digo e repito - quem tem o direito de envelhecer? Provavelmente sou um deles, tenho o direito e ainda mais, o privilégio. E digo isso com mais entonação pois tenho vinte e minha cara parece de quinze, que me olho no espelho e percebo os dias, vejo que estou mais cansado e com olheiras gigantes dos burnouts, das noites de ansiedade e insônia e do medo e sensibilidade que me fragiliza constante, eu percebo em mim, enquanto alguns nem podem: Trabalhar, dormir, acordar, trabalhar - até o fim - a casa tem um relógio, mas ele só funciona para indicar o quanto estamos atrasados. Os dias passam mais rápidos e as pessoas aproveita menos, mas é isso que o sistema quer – que o tempo voe e que você não se de conta disso, quanto mais dopado, melhor.
Papalia, Olds e Feldman (2013, p. 506) expõem:
“Em sociedades tecnologicamente avançadas, o ingresso na vida adulta não é claramente demarcado: ele exige mais tempo e segue caminhos mais variados do que no passado. Deste modo, alguns cientistas do desenvolvimento sugerem que o intervalo de tempo que envolve o final da adolescência até meados dos 20 anos é um período de transição distinto denominado início da vida adulta.”
Os autores corretamente expõem que em “sociedades tecnologicamente avançadas” não há uma correta demarcação de quando a vida adulta começa, pois o cotidiano nos mostra, como bem exposto neste artigo, que os mais desfavorecidos não têm tempo de pensar em seu envelhecimento, mas são arbitrariamente largados e poucos esforços tecnológicos serão investidos para que eles não tenham a naturalidade da demarcação dos tempos de suas vidas, interrompidas e distorcidas. O ingresso na vida adulta não é claramente demarcado, mas é sem duvida uma das ideias que sustenta as discussões atuais, quanto mais vemos em redes sociais crianças trabalhando para ajudar suas famílias e idosos distribuindo currículos para não morrerem de fome. Essas distopias vendidas pela fantasia de “esforço”, “heróis” que provavelmente virarão capa de livros de autoajuda com alguma legenda “Só não consegue quem não se esforça”, é outro dos artifícios que nossa sociedade usa para mascaras o problema social de não permitir que cada um de nós, viva em seu tempo e seu espaço, cada momento singelo, marcante e importante de sua vida.
Uma sociedade que não permite que seus habitantes consigam viver suas vidas de forma inteira, mas fragmenta-as e reparte as melhores partes só para os que supostamente “merecem” tê-las, é uma sociedade marcada pelos antidepressivos, pelo adoecimento, pelos burnouts e claro, pelo gigantesco sentimento de vazio, que aqui reitero, não necessariamente é pela “falta de sentido no futuro”, mas pode ser gerado pelas lacunas de uma história sem passado, ou com um passado cortado e teletransportado.
Gostaria de honrar os que não tem direito de envelhecer - Os que estão agora, deitados no canto do quarto, chorando sem se deparar com uma sociedade que está ceifando o seu tempo. O pai de família que está dormindo cedo pois amanhã terá que trabalhar dobrado na fábrica para sustentar suas crianças, que começou tão cedo a construir a família. A garota que já não é garota, que é "mãe". O garoto que está trabalhando no semáforo para ajudar a família. O senhor que está na rua e já está tão alucinado que não sabe seu nome, sua idade, ou em que milênio estamos, pois nenhum deles consegue olhar no calendário da mesma forma que nós.
Daremos um jeito, quem sabe.
Amanhã é sábado.
Depois de amanhã é domingo.
E segunda-feira ninguém sabe o que será.
Referências:
MOREIRA, L. V. de C.; COLLARES-DA-ROCHA, J. C. C.; FORNASIER, R. C. Social representations about old age, aging and being old according to elderly men and women. Research, Society and Development, [S. l.], v. 10, n. 16, p. e339101623709, 2021. DOI: 10.33448/rsd-v10i16.23709. Disponível em: https://rsdjournal.org/index.php/rsd/article/view/23709. Acesso em: 28 may. 2022.
GONÇALVES, P. Josiane. Ciclo Vital -Início, Desenvolvimento e Fim da Vida Humana Possíveis – Contribuições para Educadores. Editora Unijuí. 2016.
INTERSTELLAR (Interestelar). Christopher Nolan, EUA, 2014.
Tags: Ensaio, Envelhecimento, Envelhecer
Comentários
Postar um comentário