Débito de nossa individualidade.
Pra ser sincero, é irônico quando a gente pensa em se sentir individual, quando a gente quer ter o próprio jeito, quer ser conhecido pelo próprio nome, pela própria aparência e escolhas singulares. Ter um pouco de amor próprio. Porém esquecemos que o Kaue é moldado pela sociedade, forçado pela sociedade, construído dentro de um processo histórico. Então, unicamente Kaue eu não vou ser. Se, nessa vida, todo mundo é todo mundo para todo mundo, então a individualidade não existe. Mas, teoricamente, ela existe. Se todo mundo fosse propriamente individual, a sociedade não existiria. (Obrigado Shiey por este incrível diálogo). É conflitante, antigamente se sentir individual era a sensação mais repugnante possível, qualquer coisa que afetasse o rebanho, o grupo, era totalmente inadmissível, ideias, intenções, desejos. NADA. Porta barrada no seu nariz, desgosto pelos seus ideais. Fogueira, morte, enforcamento. Para retratar melhor, vou tentar pegar um trecho de Nietzsche:
“Nos tempos mais longos e remotos da humanidade, o remorso era inteiramente diverso do que é hoje. Hoje em dia alguém se sente responsável tão-só por aquilo que quer e faz, e tem orgulho de si mesmo: todos os nossos mestres do direito partem desse amor-próprio e prazer consigo de cada indivíduo, como se desde sempre se originasse daí a fonte do direito. Durante o mais longo período da humanidade, no entanto, não havia nada mais aterrador do que sentir-se particular. Estar só, sentir particularmente, não obedecer nem mandar, ter significado como indivíduo – naquele tempo isso não era prazer, mas um castigo; a pessoa era condenada a “ser indivíduo”. A liberdade de pensamento era o mal-estar em si. Enquanto nós sentimos a lei e a integração como perda, sentia-se o egoísmo como algo doloroso, como verdadeira desgraça. Ser si próprio, estimar-se conforme uma medida e um peso próprios – era algo que ofendia o gosto. Um pendor para isso era tido por loucura; pois à solidão estavam associados toda miséria e todo medo. Naquele tempo, o “livre-arbítrio” era vizinho imediato da má-consciência: e quanto mais se agia de forma não livre, quanto mais transparecia no ato o instinto de rebanho, em vez do senso pessoal, tanto mais moral a pessoa se avaliava. Tudo o que prejudicasse o rebanho, tivesse o indivíduo desejado ou não, dava remorsos ao indivíduo – e também a seu vizinho, e mesmo ao rebanho todo! Foi nisso, mais que tudo, que nós mudamos." (Nietzsche, 1882: 142-143)
E talvez realmente esta seja a maior agonia que permeia meu dia-a-dia. O de pensar que nós não somos unicamente nós, de estarmos mudando constantemente, onde boa parte destas mudanças entram em dúvida com nossas próprias escolhas, ou influências. É um fundamento estético e também espiritual, testemunhar este "cheque" entre o prazer individual e os próprios limites, com a pressão universal e a imposição forçada. Ninguém quer se sentir "apenas mais um", mas também ninguém quer estar fora da curva. No navegar de uma rede social me deparei com o fato de uma jovem (bem jovem, a propósito) ter realizado três cirurgias plásticas ao mesmo tempo.
De nada cabe a mim julgá-la, sua liberdade, suas escolhas, tudo bem, podes realizar o que bem entender de sua vida contando que você esteja 100% confortável e suas realizações sejam para o seu próprio prazer, que te faça bem, que esteja ciente das suas consequências e de seu próprio caminho, podendo arcar com o peso de seus desejos. Porém, como parte de mim sabe que não é tão fácil assim esse discurso, cabe a mim refletir sobre o acontecimento. Tenho em grande certezas, tanto pelos meus próprios erros e minha própria convivência, que muitas escolhas estéticas que tive em minha vida jamais passaram por um filtro do meu prazer pessoal, dependiam unicamente da aprovação exterior da sociedade. Ser mais bonito, mais forte, mais corajoso, mais consistente. E, de forma nenhuma, eu tinha a capacidade de raciocinar por mim mesmo o quanto eu realmente queria aquilo, mas acontecia, porque teoricamente o prazer após os atos seria, sobretudo, recompensador, apesar de se provarem, em parte, uma grande ilusão. Digo "em parte", pois não me sentia eu mesmo realizando muitas destas coisas, porém, é bom ser aceito, é bom quando pessoas te aceitam. Se torna minimamente prazeroso e reconfortante que, pelo menos, você conseguiu atenção.
Nessa mesma lógica, excluindo a parte dos ataques que a jovem sofreu, volto com o mesmo discurso.
O quão individual você se sente? Ou o quanto você necessita das opiniões de terceiros para se moldar? Porque, tenho certeza, que pessoas em si nunca se atraem por mudanças drásticas, pelo contrário, repudiam-nas. Sejam mudanças de convivência, rotina, estéticas, cirúrgicas. A lógica é que chegou-se um momento em que há pessoas que tentam ao máximo quebrar correntes de padrões estéticos e forçados, como Frida Kahlo lutou extremamente bem, assim como temos pessoas que tentam tornar estes padrões um caminho naturalizado. E então, têm-se o que William Shakeaspere chamaria de "tragédia".
"A tragédia começa quando os dois lados acham que tem razão"
Nessa irrefreável lógica e no irrefutável conflito da liberdade que se forma outra tragédia: O que seria, então, nossa individualidade? Não sendo nada além de reforços sociais extremamente mascarados pela sociedade do consumo? Em que a liberdade é se sentir preso, porém aceito, ou se sentir livre, porém estranho?
A estética, hoje, caminha para um senso peculiar (Uso esta palavra num intuito positivo), em que, cada grupo cultural retorna para o que poderia ser chamado de "beleza subjetiva", isto é, cada um destes grupos volta os interesses estéticos no que consideram ser mais chamativos. Podemos ver isto em egirls, eboys, no movimento cultural do funk, em sneakerheads, entre milhares de outros, porém, apesar do caminhar dessa sensação de liberdade, ainda há, sem dúvida nenhuma, uma opinião segregadora, em que a padronização do grupo garante a superioridade.
No fim, nenhum problema permeia minha mente no ATO de fazer cirurgias, mas no fato de que eu esteja largando minha própria essência para ser um instrumento de padronização (porra, são TRÊS cirurgias ao mesmo tempo), ter todos os meus prazeres em volta da indústria. Da mesma forma que eu posso estar largando minha subjetividade para estar tentando ser aceito num grupo, por usar suas roupas, seus tênis caros, etc. É extremamente complexo separar estes sentimentos, pois o simples fato de ser aceito já gera prazer e na vida não há nada além de uma busca incessante por prazer... Ou para impedir a falta dele.
Desejo, no fim, sobretudo boa sorte, a luta contra uma manipulação de desejos não terminará tão cedo, apesar de ela já mostrar resultados (Que, as vezes, infelizmente parecem somente uma militância de redes sociais). Se no passo a passo do combate pela saúde mental e física das pessoas já sejam encaixados que cada pessoa tem seu próprio caminho pra viver e que não há um jeito certo de viver, há uma vitória.
Eu comecei esse texto sem saber como chegar numa conclusão, e parece que ele vai ficar sem uma mesmo, fica apensas uma reflexão, um dia, quem sabe, eu consiga terminar, até lá eu só fico me remoendo nesses pensamentos, sem nunca saber o que eu realmente sou ou o que realmente vou chegar a ser.
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