Incoerente demais para ser agressivo
Era terça-feira, bem cedinho, o frio enroscado no cachecol, a mochila nas costas, passos largos depois da despedida da mãe, o pátio da escola vazio, cadeiras e mesas esticadas na entrada, a moça da cantina preparando os forninhos.
Esfregava as mãos frequentemente e assoprava contra elas, o calor tocando a palma da mão como uma onda reconfortante. O sono fazia cambalear, a mão no bolso procurava a carteira, trocaria moedas para deixar a "tia-da-cantina" feliz, ajudar no troco, sabe como é...
Jogou uma pilha gigantesca de moedas sobre o balcão, ela não fazia ideia de quanto tinha ali, muito menos ele, mas queria fazer a caridade do dia, ajudar a moça, não precisava ganhar nada em troca, só ajudar.
Ofendida, não precisava de caridade, trocaria tudo em lanchinhos, mas ele não percebeu as ofensas de suas ações, incoerente demais para ser agressivo, de noite, talvez, se ressentiria por tudo isso. Agradeceu o lanche, subiu, era muito frio ali fora.
Os "bom dias" enchiam-no de calor, um a um, enquanto as pessoas chegavam, se cumprimentavam, e começavam a zunir suas fofocas. Era outro dia, outra parte da semana, de um dia incoerente demais para ser diferente.
Entrar e sair, sinal batendo, troca de aulas, professores, recreio, despedida. Meio-dia, acabou, satisfação de andar pra fora, saltitar pela rua em direção a casa.
Mãe estava no trabalho, uns trocados a mais pra comprar uma marmita de almoço, comeria sozinho hoje. Ela prometeu que recompensaria, outro dia comeriam juntos.
A mochila cinzenta fazendo uma onomatopeia ríspida contra as costas: Tloc-tloc-tloc-tloc. A onomatopeia, reprodução e adaptação de sons em forma escrita, aprendera na semana passada, aula que já não lembrava mais, incoerente demais pra usar naquela situação.
O céu nublado e o ar úmido grudando contra seu rosto.
Entrada da padaria da Ivonete, sua vizinha, amava o garoto baixinho, mas quase não reconheceu ele embaixo de tantos agasalhos, nada que impedisse alguns comentários brincalhões e algumas risadas. Gostava dela, era como uma vovó próxima, sempre cuidadosa e amigável, apaixonante no jeitinho que só as boas vovós tem, que conquista e cativa os menores, aquelas que dá vontade de colocar num potinho e proteger de todo o mundo. Sem trocados agora, gastou todas as moedas com a tia da cantina, que já não estava zangada, já não lembrava porque estar zangada, ou ofendida. Seria ofensa, talvez? Bom... o garoto um dia aprenderia.
A sacola agora unia aos outros milhares de sons, batia contra a perna, raspando o isopor da tampa, a comida quentinha dentro, apressava o passo para chegar em casa e não comer nada frio.
Tempo que não andava pela rua tão atento, as casas estilo alemão, "enxaimel" talvez fosse a palavra, lembrava das aulas de geografia, numa informação incoerente demais para encaixar dentro da sua cabeça. Sabe? Estilo que veio de uma área ao oeste de Berl... Berlim? Talvez, não lembrava, mas vinham daquela parte do mundo, talvez até mesmo da Itália, não sei, longe, sabe como é né, jovem e com o desejo de conquistar o mundo, mas tinham muitos lugares para escolher onde começar, se perdia.
O almoço tinha sido gostoso, ao som de Blues, música de verdade, aprendeu com seu pai. Queria ser guitarrista quando fosse mais velho, deste estilo único e muito mais coerente do que todos os outros incoerentes ruídos e barulhos. Gingava pela casa enquanto esfregava os pratos, largando o pano vez ou outra pra tocar sua guitarra imaginária. Um dia compraria uma, só estava contando o tempo, logo logo, quem sabe.
Tossiu. Parou. Pensou.
Não lembrava da reação da tosse, as aulas de biologia só lotavam seu caderno de gírias e nomes confusos, incoerentes demais para encaixarem em sentidos, mas tossiu, não sabia porque, mas tossiu.
Louça lavada, música alta... banho? Quem sabe? Não gostava de se sentir fedido, garotos fedidos espantam garotas; e gostava de se sentir cheiroso, se sentia coerente consigo mesmo, encaixava ali.
Banho. A água quente fazia lembrar das aulas de física, a resistência tinha corrente elétrica, que esquentava, a água passava em contato com ela, fria e depois quente... Indução? Condução? Enfim... A água tocava no metal quente, e ficava quente também. Fazia sentido pra ele, era coerente falando assim, muito mais coerente do que outros tipos de matérias incoerentes.
I've traveled for miles around.
Gostoso de ouvir, se imaginar tocando, em pé em casa, de olhos fechados, milhões de pessoas em uma platéia imaginária a sua frente, era agradável, sensação de fazer tantas pessoas felizes, se sentir bem, se sentir coerente com isso.
Mãe em casa, perguntando do dia, esteve feliz, mas sem saber o que responder...
"Sabecomé, né? O de sempre", de outros dias incoerentes que viraram coerentes, bons demais para serem insuficientes, porém não tão bons para serem coerentes.
A janta, boa como sempre, ele lavava a louça pra deixar a mãe descansar, ela merecia, o dia foi longo, terças-feiras eram sempre corridas, meio doloridas.
Também gostava de Blues, o que era bom, os dois faziam shows juntos, colocavam os móveis de casa num canto, deixavam o ambiente coerente pra aquilo tudo, era um bom momento, revezavam na guitarra imaginária. Ela guardava dinheiro em segredo para dar uma de presente pro filho.
Cansados, dormir era bom, cada um no seu quarto, já se sentia grande demais pra dormir com alguém, mas, na verdade, queria estar só, na realidade de sua própria natureza.
O sono, já demorava, em cenas de mil mundos coerentes que vinham em sua cabeça. De momentos que só lembrava de sombras, de pensamentos que vinham na cabeça. Tudo muito mais coerente do que uma aula de física, uma de biologia, outra de química e de matemática. Sonhava aberto, fazendo uma coerência única. Era tão bom. Sem play, nem replay, só fluindo.
Não tinha Blues, pois ele era o Blues, não tinha ruas a percorrer, pois era as ruas. Nada nunca pareceu tão coerente e tão incoerente ao mesmo tempo, cansado demais pra se preocupar com a coerência do mundo, criava seu próprio significado, sem se preocupar com o que os outros pensavam, era bom estar ali, naquele único momento em que se sentia verdadeiramente coerente consigo mesmo.
Incoerente demais para pensar em incoerência.
- K e y
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